sexta-feira, 13 de maio de 2011

Carta a Deus

Meu Deus como ouso eu escrever-te esta carta quando de Ti tanto duvidei e ainda por vezes duvido embora não entenda o Universo sem Ti. É certo que de Ti, ou dos teus mensageiros (Abraão, Moisés, Boudha, Jesus, Maomé), retive o que norteou e norteia a minha vida: “Não matarás”, “Que aquele de entre vós que não cometeu pecado lhe lance a primeira pedra” e “...perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido...” e, sobretudo, que o Amor é a essência da vida!

E é por isso, Jahvé, que ouso escrever-Te. Faço-o porque, confesso, estou perplexo, revoltado e perdido. Se Tu és único, e por isso necessariamente o Pai de todas as criaturas, independentemente da crença que professam ou não, como entender que todos os apologistas do ódio, da guerra e da exclusão, independentemente da crença que professam ou não, ousem sem vergonha invocar permanentemente o Teu nome para justificarem os seus crimes, a sua ganância e o sofrimento que infligem aos seus irmãos? Dir-me-ás que sempre assim foi...mas será que teremos de continuar sempre nesta senda absurda, intolerante e mortífera? O “olho por olho, dente por dente” está-nos a deixar a todos cegos e desdentados...Recuso-me a aceitar-Te como qualquer “deus” menor, vingador, castigador e sectário...

Allah o que poderemos nós fazer, nós, simples poeiras efémeras, para que todos na Terra e no Universo entendam que só há um caminho para acabarmos com tanta loucura: o Amor, outro dos teus Nomes. Tu que és Luz, será que conseguirás acabar com todos os fundamentalismos e terrorismos? Será que a Tua centelha sagrada perfurará a muralha empedernida de estupidez e de indiferença assassina presente em tantas mentes tacanhas e cegas que ainda não sabem o que é humildade e sensibilidade? Se as próprias galáxias são poeiras no infinito Universo, que crias em permanência, será que esses inconscientes que são menos que átomos, assim como nós todos, se deixarão iluminar por Ti? Ainda haverá esperança? Quantos milhões de anos luz até que Tu, a Luz, os penetres e retires, e nos retires também!, das trevas?

Tu, O Inacessível, que tantas vezes procuro na dor das guerras, da fome, dos campos de refugiados...serás mesmo inacessível ou sou eu que não te sei encontrar porque emaranhado nas minhas contradições, nos meus medos? Será que só és O Invisível porque não Te queremos ver? Permanentemente mergulhados no horror ou nas névoas das nossas mentiras e ilusões estaremos condenados à cegueira e à desorientação perpétuas?

Tu, porque não te imagino de outro modo, que és Compaixão, Solidariedade e Ponte de Diálogo entre todos os teus filhos, nós todos, como é que te sentes há milénios perante tanta barbaridade? Será verdade que tudo isso é só teatro, ilusão e sonho? Será verdade que todos os terrores e atrocidades a que diariamente assistimos são indispensáveis ao nosso desenvolvimento espiritual colectivo da mesma maneira que só a escuridão dá sentido á luz? Será que um dia farás que acordemos e percebamos que todo esse não senso era só encenação? Será que a morte é o acordar, o renascer...? Andamos todos equivocados e daí a minha desorientação?

Tu, o Grande Arquitecto do Universo, como consegues manter o equilíbrio, a serenidade? Porque és o único verdadeiro sábio, conhecedor e fazedor do princípio e do fim, o alfa e o ómega da nossa caminhada aparentemente sem nexo. Sim porque só Tu, o Inalcançável, sabes donde viemos e para onde vamos. A nós restam-nos as suposições, as frustrações, os desejos, as crenças...

Só Tu, que és a única e verdadeira Força, o coreógrafo da valsa das galáxias, entendes o que a harmonia e a beleza encerram e pretendem. Para mim são necessariamente o objectivo último da Humanidade para o qual tanto gostaria de poder contribuir com a minha pincelada. Será? No Outono da minha vida, sem certeza nenhuma de alcançar o Inverno letárgico, ou revigorante, estou, meu Deus, cheio de dúvidas e de medos para o Mundo, para os meus, para mim...Mais do que nunca sinto-me uma inexistência...

Olho para a montanha que me reservaste para subir e receio já não ter forças para escalar o que me resta ainda vencer e ter assim uma possibilidade de chegar ao arbusto ardente, a Ti.

Se não conseguir garanto-Te que tentei e continuarei a tentar até ao último dos meus suspiros pois, como sempre me ensinaste, e acredito, “o que tem de ser tem muita força”. Tu tens que ser. Se assim não for já nada tem sentido para mim e terei vivido uma falácia. Não pode ser!

Desde aquele dia, na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, em que não me senti merecedor de um sinal que me enviaste (assim hoje creio) e por isso, descrente, Te pedi confirmação (o que evidentemente não me concedeste), que me julgo indigno de Ti. Não estava preparado. Mais uma vez, pecador, nesse dia duvidei de Ti, da tua força, duvidei de mim e do meu merecimento.

Só espero que no fim dessa minha permanente andança pelo mundo, onde tento apenas ser um bombeiro que distribui umas gotas de água (a pressão na mangueira é quase nula), esteja um dia pronto para Te reconhecer se tiver a felicidade de Te encontrar.

Possa o arco em que me transformaste ter força suficiente para que as acções e as preces que tem lançado se tenham aproximado de Ti. Se assim não foi é porque errei. A minha única defesa será dizer: pelo menos tentei! Será?

Até esse momento derradeiro em que espero fundir-me em Ti, e impregnar-me de uma ínfima parcela da tua sabedoria, faz-me entender este mundo que tanto me machuca e me tritura. Para tal eis-me aqui pronto para beber a taça de fel que eventualmente me tenhas destinado. “Caminho plano não leva ao céu”... diz a sabedoria popular.

Dá-me então forças para continuar a subir a montanha e um dia ter a suprema felicidade de beber uma taça de mel e leite contigo.

Tenho pois que continuar a subir a montanha...

(Fernando Nobre)

Sem comentários: