segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Genesis em Cascais em 1975

Um testemunho!:

"O duplo concerto dos Genesis, em Cascais, em 6 e 7 de Março de 1975, marcou uma geração de jovens que vieram de todo o país para assistir ao primeiro grande espectáculo de rock realizado em Portugal. Na altura, a banda atingira o ponto mais alto do seu período criativo, tornara-se um ícone para os fãs do rock progressivo que, naturalmente, se consideravam o máximo em matéria de bom gosto musical.

O testemunho que se segue é uma visão imediatista, assumidamente subjectiva e orgulhosamente parcial de um dos participantes nesse dia inesquecível.

Março de 1975. Portugal está ao rubro, em pleno PREC – processo revolucionário em curso. No dia 3, o jornal “A Capital” trazia a manchete: “CIA planeia golpe em Portugal antes do fim de Março”. Um comício do Partido da Democracia Cristã (PDC), no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, é boicotado por manifestantes de extrema-esquerda. Uma vintena de liceus estão em greve. Não é o caso do Pedro Nunes – com certeza as reivindicações já tinham sido atendidas – onde dia sim, dia sim, havia recontros entre estudantes alinhados com o MRPP, os diferentes grupos m-l que vieram a formar a UDP, a UEC (PCP) e o PPD (o CDS tinha sido proibido no liceu no início do ano lectivo).
Mas no fim da semana que antecedeu o golpe militar de 11 de Março (na terça-feira seguinte) houve umas tréguas inesperadas. Na sexta-feira, dia 7, não houve arraial de pancadaria no Pedro Nunes. “Comunas” e “fachos”, que poucos dias antes atiravam paus e pedras uns aos outros, mostravam uma estranha cumplicidade. Logo a seguir ao almoço, vários grupos saíram do liceu. Iam apanhar o comboio ao Cais do Sodré, a Santos ou a Alcântara, a caminho de Cascais. Nessa noite realizava-se o segundo e último concerto da banda de rock progressivo mais amada daquele tempo – de todos os tempos – os Genesis!
Os mais avisados levavam farnel, incluindo umas Sagres – não era proibido vender álcool a menores de 16. Mas o tesouro mais precioso era o bilhete. O meu, comprei-o com semanas de antecedência na agência ABEP, nos Restauradores, custou-me 88 escudos (incluindo 10 por cento da taxa de agência) e garantiu-me um lugar na Bancada B.
A viagem foi tremenda. Apesar de ainda haver primeira e segunda classe na Linha do Estoril, entrámos na carruagem mais à mão e, mesmo assim, viajámos como sardinha em lata. Na estação de Cascais, a multidão espraiou-se pela vila, subindo a colina até ao Pavilhão do Dramático. A tarde foi passada no jardim vizinho, a comer o farnel e à espera que abrissem os portões. Aqui e além, um cheirinho denunciava os grupos onde se fumava substâncias ilegais. À medida que a hora do concerto se aproximava, chegava cada vez mais gente. Formaram-se bichas, começaram os empurrões. Polícia, nem vê-la – em plena revolução ninguém lhe ligava. Quando a confusão já era grande chegou a tropa, o COPCON (Comando Operacional do Continente). Os soldados, muitos de camuflado, como se usava na altura, tentaram pôr ordem nas hostes mas, apesar dos tiros de G-3 - primeiro isolados, depois de rajada - acabaram por deixar entrar no pavilhão dezenas que não tinham bilhete. Reza a lenda que, nos bastidores, Peter Gabriel ficou assustado – tinha levado a filha bebé.

Uma eternidade depois da hora marcada (nove e meia), a plateia, enfim mais sossegada após os que tinham pago os 120 esc. de bilhete terem “concordado” em partilhar as costas das cadeiras com os borlistas, deixaram de se ouvir os tiros (sempre para o ar - não me lembro que se tenha falado de feridos).
As luzes apagam-se. Ouvem-se os acordes de piano. O palco enche-se de fumo branco. “And the lamb lies down...” Milhares de gargantas que fazem o pavilhão rebentar pelas costuras abafam a voz de Peter Gabriel: “... on Brooooooadway”.

Estavam ali, em carne e osso, os cinco magníficos. À esquerda do palco, Steve (Hackett) sentado com as guitarras acústicas e eléctricas, muito concentrado, o atinado da banda. A seguir, Mike (Rutherford), com o cabelo muito comprido, ora sentado ora de pé, com o baixo e a guitarra de dois braços. Ao centro, na monumental bateria, Phill (Collins), só de bigode - cortou a barba para o concerto: à chegada a Lisboa ainda tinha barba comprida -, t-shirt encarnada com mangas brancas, auscultadores nos ouvidos, indispensável nos ‘backing vocals’ (tinha cantado a solo em “More Fool Me”, o último tema do lado 1 do álbum “Selling England By the Pound”, de 73, um prenúncio do que viria a acontecer com a saída de Gabriel, precisamente depois da digressão de “The Lamb”...). À direita do palco, Tony (Banks), numa “ilha” com as teclas - órgãos, sintetizadores, piano. Last but not least, Peter (Gabriel), de cabelo mais curto, um look que contrastava com a imagem que tínhamos dele - o cabelo comprido com uma pelada no meio, como aparecia nas fotos dos discos anteriores. Blusão de cabedal preto, t-shirt branca, olhos pintados de preto: I’M RAEL!

Depois... bem foram para aí umas duas horas noutra dimensão, que deixaram flashes inesquecíveis ao fim de 30 anos:
O carro no palco em “Fly on a Windshield” (“There’s something solid forming in the air...”).
Peter de tronco nu a correr pelo palco em “Cuckoo Cocoon”.
A dança hipnótica de Gabriel dentro de uma espécie de biombo giratório em “In the Cage” (“Keep on turning...”).
O delírio geral quando chegou a altura de “Counting Out Time”: era a cantiga mais conhecida porque tinha sido editada em single (para os menores de 30: na era do vinyl, um single era um disco de 45 rotações, com uma música de cada lado; os álbuns eram maiores, rodavam a 33 r.p.m.... e eram mais caros); além disso, tinha a letra mais ousada, sobre o uso de um manual para os preliminares, e um verso maroto: “Erogenous zones, I love you!” Peter, endiabrado, acompanhava o canto com a pandeireta.
Em “The Colony of Slippermen”, Gabriel aparecia caracterizado como um mutante, cheio de bolhas, representadas por balões. Um dos balões, precisamente no baixo ventre, não queria encher, depois encheu de mais e por fim rebentou, para gáudio dos mais atentos.
No grande final, em “It”, um jogo de espelhos faz magia: Gabriel/Rael aparece em dois lados do palco ao mesmo tempo.
Para acabar em beleza, esperávamos dois encores (no concerto da véspera tinha sido “Watcher of the Skies”, do álbum “Foxtrot”) mas, provavelmente por causa da confusão que antecedeu o espectáculo, só tivemos direito a um. Mas que encore: logo um dos temas de culto (afinal, não são todos?) da banda: “The Musical Box”, do álbum “Nursery Crime”, com Peter maquilhado como se fosse o velho Matusalém a fazer vibrar a multidão com o verso de despedida: “Touch me now, now, now...”

Eu tinha 14 anos mas, ao contrário de Paul Nizan, já tinha a certeza de que aqueles tinham sido dos melhores momentos do resto da minha vida.

João Ferreira (JP em 1975), 44 anos."

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